A filósofa e teóloga Ivone Gebara não esconde sua decepção com a exortação apostólica
Amoris laetitia: “ingenuamente eu esperava que se
dirigisse primeiro às famílias católicas, sobretudo àquelas que querem estar,
na medida do possível, dentro de uma prática de seguimento das orientações do
papado”.
Ivone destaca tanto a
dificuldade de absorção dos escritos pelo laicato como a necessidade da ação
mediadora do clero. “Os pobres que quiserem entender alguma coisa do texto não
poderão fazê-lo em forma direta, mas sempre através da mediação interpretativa
de bispos, presbíteros, diáconos, etc.”, pontua.
Na entrevista a seguir,
concedida por e-mail à IHU On-Line, Ivone desenvolve uma crítica à forma como a exortação manifesta o ideário conservador,
hierárquico e masculino da Igreja acerca das famílias e suas múltiplas
possibilidades de configurações. “Mais uma vez a Igreja aparece como sendo em
primeiro lugar a hierarquia masculina e célibe, hierarquia que não se constitui
como família segundo o modelo indicado, mas que critica comportamentos e define
orientações de vida como se fosse mestra dos complexos meandros do amor
humano”, analisa.
Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela
lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER.
Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do
mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e
antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso.
Entre suas obras mais recentes publicadas estão Compartilhar
os pães e os peixes. O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de
liberdade (2005), entre outras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - A quem a Exortação é
endereçada? Como explicitar a questão dos destinatários?
Ivone Gebara - O
endereço da Exortação é claro, embora
trate da família e do matrimônio cristão. Dirige-se em ordem hierárquica: aos
bispos, aos presbíteros e diáconos. Segue o mesmo estilo das cartas, encíclicas
e exortações dos papas anteriores. Entretanto, devido ao tema, ingenuamente eu
esperava que se dirigisse primeiro às famílias católicas, sobretudo àquelas que querem estar, na
medida do possível, dentro de uma prática de seguimento das orientações do
papado.
Espantou-me o fato de
que o Papa Francisco, querendo ser tão próximo do povo pobre
e reiterando por diversas vezes que é preciso ir às ruas, ouvir os pobres,
abraçar sua causa, uma vez mais escreva ou assine um texto tão vasto e tão
inacessível aos pobres assim como ao comum das pessoas. Isto significa que os
pobres que quiserem entender alguma coisa do texto não poderão fazê-lo em forma
direta, mas sempre através da mediação interpretativa de
bispos, presbíteros, diáconos, etc. Enfrentamo-nos novamente ao problema da
sutileza dos poderes religiosos e de sua capacidade de manter as mentes e os
corações submissos a suas afirmações consideradas ‘verdades’ segundo Deus ou
segundo a Bíblia.
A tão
propalada responsabilidade pessoal e coletiva é reduzida à letra ou a uma
retórica sem significativa eficácia na vida. Além disso, mais uma vez a Igreja
aparece como sendo em primeiro lugar a hierarquia masculina e célibe,
hierarquia que não se constitui como família segundo o modelo indicado, mas que
critica comportamentos e define orientações de vida como se fosse mestra dos
complexos meandros do amor humano. Um mal-estar invade leitores/as que
esperavam reflexões mais simples e diretas que pudessem ajudar na formação contemporânea
das consciências, no respeito às diferenças e na responsabilidade coletiva.
IHU On-Line - O título da exortação não
é um convite ao amor?
Ivone Gebara – O belo
título da exortação “Alegria do amor” mais do que um convite ao amor é um
convite ao pensamento a partir do cotidiano de nossas relações. Sabemos bem que
embora haja alegrias no amor, o título parece esconder as tristezas do amor, os
dissabores, as muitas frustrações, as inevitáveis desavenças, as quebras de
confiança, a crueldade humana que se manifesta na vida de cada dia. Finalmente,
esconde através de uma poderosa e sutil atitude ‘paternal’ a sujeição dos fiéis
a um mundo idealizado que não é o nosso, a um mundo onde os poderes espirituais
tendem a mascarar a complexa mistura de nossas vidas.
O mais grave em tudo
isso é a justificação das orientações e interpretações dadas através do que
entendem por “poder de Deus”, não hesitando em subordinar consciências a seus
‘pareceres’ muitas vezes identificados também à liberdade. Há uma ambiguidade
que atravessa o texto todo, sobretudo no uso de conceitos imaginados como
‘aquisição tranquila’ da comunidade de fiéis ou como evidentes na experiência
de muitos. Há também uma espécie de defesa da hierarquia da Igreja que
aparece como o lado que sabe e que tem razão na complexa história do mundo de
hoje. É um lado que fala não como a publicidade consumista ou como os grandes
desse mundo e nem como os que escorregam por caminhos que parecem ser
contrários à ordem estabelecida por Deus. Os bispos reassumem
sua função magisterial até em assuntos que parecem fugir de sua competência.
IHU On-Line - Pode esse documento à
primeira vista ser inspirador de mudanças nas igrejas locais?
Ivone Gebara - O
documento é de difícil e monótona leitura. A estrutura do texto e a alusão aos
padres sinodais confunde o leitor, que se pergunta se as ideias vêm mesmo
do Papa Francisco ou ele se sentiu obrigado a expressar
algumas ideias que foram discutidas no Sínodo da Família.
Além disso, existem várias questões da atualidade de nosso mundo consideradas
de maneira muito geral e o tratamento que lhes é dado aparece como uma solução
fácil, dependendo muitas vezes da vontade individual e do seguimento dos ensinamentos da Igreja.
Questões como a pobreza,
a falta de emprego, de condições de moradia e saúde, a violência familiar, a
emigração massiva que tornam difícil a vida familiar são abordadas muitas vezes
em meio a um aparato bíblico, teológico e citações de documentos eclesiásticos.
Tal procedimento, longe de esclarecer, obscurece a problemática e não lhe dá o
devido valor no contexto atual de nossa história. O texto cheio de citações que
justificam posturas tradicionais da hierarquia católica não permite que os
leitores tenham uma visão mais integral das questões e até de possíveis
novidades abordadas no Sínodo.
Não creio que essa Exortação poderá modificar muita coisa na prática
das hierarquias religiosas em relação à vida concreta
dos fiéis. Da mesma forma não há mudanças profundas no documento nem na forma,
nem no conteúdo, que respondam aos novos desafios que estamos vivendo. Por isso
não estou segura de que o texto possa ajudar, a não ser pela metodologia de
convidar as pessoas a pensar de outra forma os desafios que a vida apresenta
hoje.
IHU On-Line - Como aparece a mediação
da Bíblia no texto?
Ivone Gebara - É
espantoso observar que o uso da Bíblia como primeiro fundamento das posições
assumidas pelo Governo da Igreja em relação à família parece desconhecer o
trabalho de muitos estudiosos e estudiosas dos textos considerados “sagrados”.
Apreende-se na exortação uma leitura interpretativa pré-crítica, idealizante e
concordista das narrativas, desconhecendo os esforços não só das leituras
histórico-críticas, mas das muitas hermenêuticas e leituras materialistas,
populares, feministas e pós-coloniais das Escrituras. Muitas vezes temos a
impressão da presença do “a Bíblia tem razão”, método pastoral usado
especialmente no século XIX e início do século XX por grupos fundamentalistas.
Além disso, muitas vezes
se nota uma desconexão entre o sentido tradicional do texto e o uso que o Papa Franciscofaz dele. Por exemplo, no parágrafo 23
justifica a importância do trabalho humano (Gênesis 2,15) falando dele como ordem divina e
ignorando outras alusões ao trabalho como castigo à desobediência de Adão e Eva. Em outros
termos, os textos e as interpretações são muitas vezes deslocados de seu
contexto literário e usados para justificar posturas ingênuas sobre
a família humana. Na mesma linha, usa a família de Nazaré como ícone para todas as famílias cristãs,
idealizando-a mesmo quando fala dos sofrimentos vividos por Maria e José por
conta da perseguição de Herodes e da
fuga ao Egito.
Família ideal e mundo real
A partir dessa
idealização, afirma a doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a família fundada
na indissolubilidade dos laços conjugais. E nessa linha afirma, ingenuamente, a
capacidade de cada família de enfrentar-se às vicissitudes da vida e da
história (parágrafo 66) a partir da manutenção dos laços sacramentais e da
consideração da família de Nazaré como ícone da família cristã. Este tipo de
abordagem simplista, na realidade, esconde o poder de controle que a
instituição, especialmente os prelados, querem ter sobre a vida dos fiéis.
Encobre e silencia a realidade das relações humanas, a dificuldade dos tempos
atuais e as novas formas de viver e conceber as relações humanas. E mais:
raciocina sempre opondo um mundo ideal “querido por Deus” ao mundo real das
relações cotidianas marcadas por nossas múltiplas paixões e fragilidades.
Valoriza uma espécie de visão definitiva do matrimônio e da família em
detrimento da capacidade que temos de recomeçar vínculos sem que por isso estes
sejam levianos ou que busquem apenas uma satisfação egoísta.
IHU On-Line - E a teologia presente no
texto apresenta novos desafios?
Ivone Gebara - Uma
análise mais acurada seria necessária para captar as diferentes teologias
presentes no texto. Entretanto, uma vista rápida me permite apenas dizer que a
teologia da exortação retoma a mesma da
tradição da Igreja expressa pelos pontífices anteriores especialmente a partir
do Concílio Vaticano II. Na abordagem dos diferentes
problemas vividos pelas famílias prima a caridade e a misericórdia antes do
julgamento. Isso me parece uma boa coisa. Entretanto, os parâmetros teológicos
do texto são limitados quase que exclusivamente às fontes do magistério da
Igreja com referência especial aos textos dos dois últimos papas.
IHU On-Line - Ainda no início da
exortação, nos parágrafos 54, 55 e 56, o Papa reflete sobre ‘a mulher’ e
critica a chamada ‘ideologia de gênero’. Como entender isso no atual contexto
social?
Ivone Gebara - O
parágrafo 54 inicia-se afirmando os direitos ‘da mulher’ e
a importância de sua participação no espaço público. À primeira vista tal
afirmação pode ser louvável, mas não é isenta de muitos problemas e
dificuldades. Mais uma vez começa-se pelo abstrato ‘mulher’ como se a
multiplicidade de rostos de mulheres se tornasse um problema. De fato, falar de
mulheres, no plural, como pensa o feminismo é um obstáculo para o pensamento
abstrato e monolítico da hierarquia que trabalha muitas vezes sobre conceitos
distantes das vivências históricas reais.
Ao falar de ‘direitos’
a exortação parece isentar o cristianismo da
responsabilidade de ter mantido através de sua teologia/ideologia as mulheres como inferiores aos homens até os dias de
hoje. E mais, parece ocultar e silenciar o quanto as muitas reivindicações de grupos
de mulheres em muitas partes do mundo revelam a cumplicidade da hierarquia
católica na manutenção da falta de direitos das mulheres.
Nessa linha o parágrafo
continua falando “das formas de feminismo que
não podemos considerar adequadas”, mas não esclarece quanto às formas de
feminismo que lhes parecem adequadas. Quais seriam elas? Onde se situam? O que
pedem elas do governo da Igreja? A exortação mais uma vez ignora o esforço histórico
mundial de diferentes grupos de mulheres na conquista de direitos e respeito à
sua dignidade nas diferentes instâncias sociais, políticas e culturais. Ignora
ou omite as lutas históricas como as do sufrágio universal que continuam ainda
presentes na atualidade de muitos países.
O desafio do gênero
No parágrafo 56, aparece
a crucial questão de gênero (gender) como um
desafio a ser considerado. Segundo o texto, afirma-se que a ‘ideologia de gênero’ “nega a diferença e a
reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferença de
sexo e esvazia a base antropológica da família”.
O que se entende por
“reciprocidade natural”? O que de fato conhecemos é a não reciprocidade
natural. Entretanto, conhecemos algo da reciprocidade histórica. Esta é uma
aquisição árdua de alguns grupos que reconhecem os direitos de seus semelhantes
e buscam afirmá-los nas relações sociais e familiares. Além disso, ao criticar
a ‘ideologia de gênero’ o texto fala de previsão de uma
sociedade sem diferença e sexo... O que seria a previsão de uma sociedade sem
diferença de sexo? O que os redatores ou o redator entende por isso? Trata-se
de uma questão de direitos, de ética?
Confesso a confusão e
falta absoluta de clareza que este parágrafo provoca em qualquer leitor/a mais
crítico. Justamente a chamada teoria do gênero e
não ‘a ideologia de gênero’ com todos os limites admitidos pelas teóricas feministas é uma afirmação contra o
absolutismo de uma cultura que nega a diferença e nos faz entrar e nos submeter
ao mundo das normas ‘masculinas’ preestabelecidas como sendo ‘natureza’ e ordem
divina. Faz-nos entrar em modelos de comportamento e em predefinições de
conteúdos identitários nos culpabilizando se não correspondemos a eles. A noção
de ‘natureza’ proposta pelo documento é de um simplismo atordoante. Parece crer
numa espécie de ser humano natural já feito, nascido diretamente das mãos de
Deus e à imagem de como eles (os escritores do texto) o concebem.
Identidades preservadas monoliticamente
Entretanto, a crença
nessa espécie de materialismo ordinário provindo de um Deus antropomorfizado os
leva a afirmar, no mesmo parágrafo 56, que a ideologia do gênero não
permite “guardar nossa humanidade, aceitá-la e respeitá-la como foi criada”.
Mais uma vez, o que significam essas afirmações?
Conceitos
como teoria e ideologia, natural e antinatural, construções culturais, regras e
códigos simbólicos, identidades plurais não são refletidas a partir de nossa
contemporaneidade. As identidades monolíticas aparecem como sendo obra da
criação divina da qual não podemos fugir. Isto parece fornecer uma base sólida
de ‘verdade’ e responder às inseguranças, inclusive identitárias, do mundo de
hoje.
Na exortação existe uma antropologia
fixista que determina o que é o homem e o que é a mulher
sustentada pela hierarquia de gênero e pela heterossexualidade muitas vezes
compulsória tornada ‘natureza’. Então somos convidados/as a ser compreensivos e
tolerantes com os diferentes, ajudá-los em suas necessidades e até compreender
seus limites. Mas, seguramente eles não gozam da condição de ser um modelo
ideal de família. Eles e elas não poderão ser expressão histórica do ícone da
sagrada família de Nazaré.
A existência na diversidade
Encontramos na exortação algumas críticas negativas à noção
de gênero, mas não uma problematização séria a partir da
qual somos convidados/as a refletir e, sobretudo, a amar-nos a partir de nossas
diferenças. No fundo só conhecemos as diferenças, a diversidade... Só existimos
como vida diversificada e interdependente... A unidade é na realidade uma
construção na linha da interdependência e dos inevitáveis conflitos presentes
em nossa vida em família ou em sociedade e, portanto, em relação a tudo o que
existe.
Entretanto, há para
os padres sinodais ou para o Papa, como aparece no texto, categorias fundacionais de
sexo e gênero elevadas a verdades naturais estabelecidas por Deus. Mas o que
acontece quando os diferentes grupos sociais vivem outras relações, outras
crenças a partir de seus corpos? A hierarquia da Igreja deve
os condenar e os convidar à normatização segundo os parâmetros que estabelece.
Não seria essa uma pretensão fadada à inoperância? Não seria uma forma de
desacreditar a instituição e os serviços que ainda pode prestar? Na exortação
podemos perceber a presença da tolerância para com pessoas consideradas
vítimas, mas ao mesmo tempo uma intransigência em relação a teorias e
filosofias que abalariam os alicerces do idealismo filosófico católico tão
fortemente presente no texto.
IHU On-Line - Até que ponto a Exortação
pode ajudar as famílias no mundo de hoje?
Ivone Gebara - Tenho
dúvidas, muitas dúvidas em relação aos textos que não se baseiam na autoridade
da vida com sua precariedade e suas contradições. Basear-se na vida não é
apenas tomar alguns exemplos tirados daqui e de lá para fundamentar nossas
ideias preconcebidas, para justificar o que pensamos. Basear-se na vida é
resgatar outros jeitos de inspiração que a Bíblia e a Tradição podem nos
oferecer, jeitos menos normativos, mais realistas e poéticos ao mesmo tempo.
Por exemplo, a beleza e
a plasticidade da narração presente em Gênesis 2, um dos
mitos bíblicos da criação do humano do húmus da terra misturado ao sopro divino
e que poderia ser lido como poesia sobre o mistério humano, sempre mistura de
barro, terra e sopro criativo. É claro que estou usando textos bíblicos, textos
de nossa tradição, mas não lhes estou dando autoridade indiscutível sobre
nós... Basear-se na vida é evocar sentidos, lembranças, analogias como se
quiséssemos solicitar às pessoas que façam o mesmo a partir de suas vidas...
Como se quiséssemos convidá-las a resgatar pedaços de suas vidas e aprender
deles como fazia Paulo Freire no método de
alfabetização dos adultos. Resgatar palavras, experiências diversas e fundamentais
que despertem em nós novas ternuras e novas possibilidades para sentir-nos bem
em sermos simplesmente humanos.
Por isso é
preciso que cada comunidade cristã escreva seus textos, suas diretivas, seus
objetivos presentes... É preciso deslocar o magistério para o povo e permitir
que escrevam suas cartas sobre e como suas vidas estão sendo vividas. O
conhecimento universal ou universalizante apesar de sua importância nem sempre
ajuda os pequenos grupos a crescerem por dentro e por fora. É certo que num
mundo globalizado necessitamos de algumas análises globais, mas necessitamos,
sobretudo, aprender desde o local, a fazer análises a partir de nossas próprias
vivências, a criar a tradição de pensar nossa vida valorizando nossa história e
nosso saber.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar
algo mais?
Ivone Gebara - Gostaria
de finalizar essa conversa dizendo que acredito na boa vontade do Papa Francisco, reconheço o valor de muitas de suas
iniciativas e admiro seu esforço na introdução de comportamentos e atitudes que
indiquem opções éticas e evangélicas para o nosso tempo. Mas também percebo
nele, como em muitos de nós, a “nostalgia das origens perfeitas”.
E essa nostalgia é ambígua e nos leva a querer um presente mais ou menos
perfeito em vista de um futuro ou uma finalidade perfeita da vida.
Parece complicado o que
digo, mas é bem simples. Limitando-me à proposta de vida presente no
cristianismo, acreditamos que viemos de Deus ser perfeito e vamos depois dessa
vida “ser nesse Deus perfeito”. Há uma ideia de perfeição meio
obscura que nos habita e nos faz buscar o homem perfeito, a mulher perfeita, a
família perfeita, a comunidade perfeita, como se o ideal da vida fosse a
realização de uma perfeição projetada que não sabemos o que é.
Creio que,
embora tenhamos utopias de muitas espécies, estamos vivendo um tempo em que a
vida nas suas diferentes expressões e dimensões nos aparece como uma realidade
misturada. E que essa mistura expressa a grandeza e a pequenez, a beleza e a
feiura, a bondade e a crueldade, a crença e a descrença em doses diferenciadas
e em percepções diversificadas presentes nos seres humanos e em tudo o que
existe.
Por essa razão, longe de
destruir a nossa humanidade e diversidade, muitas teorias da atualidade têm nos
ajudado a acreditar que somos mais do que as definições, determinações e
classificações que fazemos de nós mesmos. Não podemos esquecer que esta diversidade também pode ser encontrada na Bíblia,
por exemplo, em muitos textos que falam de Deus. Este aparece com uma
diversidade imensa de rostos... É oleiro, tem mãos de artista, tem útero,
seios, tristeza, cólera, é pai, é galinha que recolhe os pintinhos, é defensor
dos oprimidos, é guerreiro, é castigador, é vingador, lento na cólera, cheio de
amor e misericórdia, brisa suave... Como diz o parágrafo 313 da exortação, “o amor assume matizes diferentes...”.
Artistas, poetas e inventores de si
mesmos
Essa plasticidade de imagens e símbolos reflete bem a
efervescência e mistura da vida, essa mobilidade intensa da diversidade e da
diferença que nos constitui. Por isso, somos convidados a amar o próximo, o
caído na estrada, o malcheiroso, o diferente, e não só aquele ou aquela que
pensa igual ou gosta das mesmas coisas. Talvez devêssemos tentar ser mais
artistas, inventores de nós mesmos, poetas capazes de brincar com as palavras,
de dividir pães, peixes e frutos na renovada dança de cada dia. Sair da rigidez
do mesmo, das estruturas prefixadas dos documentos, das palavras de ordem e das
teses magistrais... Sair dos conselhos em vista da perfeição desconhecida ou
imaginada... Perceber que há mais bondade do que imaginamos e muita, muita
beleza que não pode ser contida nos odres velhos de nossas teologias.
Por João Vitor Santos
http://ihu.unisinos.br/entrevistas/553756-a-igreja-solteira-masculina-e-hierarquica-que-fala-a-familia-entrevista-especial-com-ivone-gebara
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